Edilson Damasceno
Ler a Bíblia. Algum livro, qualquer versículo. Pode até ser
tarefa simples, mas a interpretação do que está escrito não é tão fácil. E essa
dificuldade, de conseguir captar o que está posto, não é de hoje. O
entendimento de parábolas e expressões elaboradas há mais de dois milênios
ainda é o maior desafio do homem. Exemplo dessa afirmação está na frase
“caminho estreito e espinhoso”, que levará ao Céu. Para a maioria, o sentido
que a frase tem é a de uma vida dedicada aos ensinamentos que estão na própria
Bíblia, os quais remeteriam a uma vida doutrinada pela religião centrada no
Cristianismo. E é aqui que está a questão: a interferência que os dogmas
religiosos tentam passar às pessoas e existe a diferença entre fé e religião.
Exemplo disso pode ser conferido no livro de Mateus, capítulo
12, versículos 30/31: “...e amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e
com toda a tua alma, e com todo o teu entendimento... amarás o teu próximo como
a ti mesmo.” Em outras palavras, a passagem bíblica remete à questão de que não
basta apenas pensar no outro. Para que alguém ame outra pessoa, é necessário
que se tenha amor próprio. Impossível, assim, vislumbrar alguém que possa amar
sem saber o que significa o amor. Assim sendo, a parte “amarás o teu próximo
como a ti mesmo” implica dizer que é preciso que a pessoa se conheça e se
aceite. Somente assim terá como conhecer o outro e aceitá-lo.
A questão é que uns tentam interpretar a Bíblia sem a
devida compreensão real do que o Livro Sagrado quer passar. Programas de
televisão, em horários e emissoras distintos, evidenciam que a fé se tornou
moeda. E os problemas do homem são abordados de maneira indiscriminada. Como se
somente os que não seguem alguma religião fossem passíveis de sofrer alguma punição
divina. É comum se observar, ao analisar o que é dito, que busca-se atrair
fiéis por meio de frases de efeitos e lança-se parábolas bíblicas para se
tentar provar ou atestar que o “caminho estreito e espinhoso” é o único que
leva à salvação.
Contudo, não se vislumbra aqui nenhuma possibilidade de que
seria possível viver sem fé. É algo inerente ao homem, e por mais que algum
possa dizer que não acredita em Deus, de certa maneira, está acreditando. E ter
fé é ter crença. E, assim sendo, é algo que não se pode dissociar. Mas existe
diferença entre fé, religião e crença.
Mas como a religião (que segue o Cristianismo) poderia
fazer diferente? Seria possível não buscar – nos problemas que todo mundo
enfrenta – alguma solução metafísica ou algum caminho realista à origem destes
e que não fosse algo que remetesse aos pecados? Sim, porque a leitura da
realidade que se tem é a de que qualquer aperreio que você passe, tal fato
seria uma espécie de provação; que seria o mal tentando prevalecer e que se
você não buscar o “caminho da fé”, o destino será, fatalmente, o inferno.
O que se disse até aqui é algo que remete à questão de que
não se teria como alguém viver sem o amparo da fé. Por mais que se tente ser
indiferente ao aspecto religioso, é a religião que dá o sustentáculo ao
emocional do homem. Independente da religião que se tenha, ou até mesmo da
ausência de religião, a crença em um ser divino é inerente ao homem. Faz parte
da essência da humanidade. Na Grécia Antiga, os deuses da mitologia eram essa
“salvação”: Zeus, Hades, Apolo, Poseidon e outros. Com o passar do tempo, veio
a leitura de mundo de maneira racional e os aspectos naturais passaram à
explicação da origem de tudo: terra, fogo, vento e ar. Mais na frente, surgem
teóricos que aludem a criação do mundo a uma força superior. A algo divino. E
daí veio o termo Deus.
E é nesse ponto que se volta à Bíblia, que mostra aspectos
de uma sociedade diferente da que se vive hoje, mas que direciona ao homem a
viver com ética. A fazer o bem. A seguir pelo caminho dos justos. Mas a
compreensão de tais palavras não é fácil. Para o pastor Cristóvam Reinaldo, da
Igreja Batista, a leitura da Bíblia deve ser orientada para se evitar choques
em quem muda de uma religião para outra. E frisou que é preciso compreender que
o Livro foi escrito em contexto social, cultural e político diferente do que se
vive hoje. Para tanto, disse ele, a congregação comandada por ele mantém uma
espécie de curso relacionado ao ensinamento bíblico, no qual o novo convertido
tem todas as orientações para que as regras bíblicas passem a guiar sua vida a
partir daquele momento.
“O que nos rege é a Bíblia. Procuramos seguir o que está
escrito, como uma orientação ao nosso bem. Quando a gente segue em partes, fica
algo incompleto”, disse o pastor, acrescentando: “Quando se vive dentro da
Bíblia, a gente tem uma vida mais orientada. Quando se escuta a palavra... Ser
evangélico não é somente mudar de religião. Tem que seguir a Jesus”. Perguntado
sobre a interpretação que se faz da Bíblia, o pastor informou que tudo é
orientado; “quando a gente nasce, vai aprendendo aos poucos. E fazemos o
ensinamento bíblico”, disse.
O pastor Cristóvam enfatizou que as pessoas enfrentam
problemas sérios em suas vidas, justamente pelo fato de seguir sem alguma
orientação e vão somente na base do “eu acho que posso isso e aquilo”. Para o
pastor, é preciso compreender a Bíblia como um livro sagrado, já que ele foi
escrito por homens inspirados por Deus.
A professora Eliane Anselmo, doutora em Antropologia da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) – e que pesquisa a
religião –, enfatizou que não se pode generalizar e dizer que a Bíblia seria
uma espécie de “guia da salvação. “Quem propaga ou a difunde são as religiões
cristãs, ou seja, as que se baseiam nos ensinamentos e Jesus, que é a fonte de
suas crenças”. Ela analisou que a Bíblia
é um livro com textos religiosos e de valor sagrado para o cristianismo. E
divinamente inspirado.
Segundo ela, apesar de suas diversas versões ou narrativas,
resultado da inacessibilidade da Bíblia entre a antiguidade e a Idade Média,
criando acréscimos e até distorções, a maioria das pessoas – atualmente –
interpreta a Bíblia de acordo com sua congregação religiosa. “Um de seus
ensinamentos mais importantes é justamente a ideia da salvação, que se refere à
salvação da alma, que estaria livre da condenação eterna após a morte. Esta
salvação é oferecida por Deus, pela sua graça, e deve ser obtida através da fé
em Jesus Cristo. Como esta ideia também está relacionada ao Reino de Deus, a um
mundo que há de vir, dá também um indicativo de esperança, de um mundo melhor.
Acredito que isto agrada as pessoas, sobretudo diante da conjuntura atual
vigente, marcada por desigualdades sociais, econômicas e políticas.”
E a professora vai mais além: “Acho que as desilusões desse
mundo fazem que as pessoas busquem cada vez a esfera religiosa, busquem mais
intensamente uma espiritualidade, uma forma de crença. E nessa ‘disputa’,
digamos assim, os cristãos, mais precisamente os dos seguimentos evangélicos,
tomam a Bíblia como esse “guia”, como sua principal estratégia. Assim, a
importância da Bíblia e de seus ensinamentos está para os cristãos, tal como a Torá está para os judeus, ou como o Alcorão está para o islamismo, ou ainda,
tal como para os espíritas está o “Livro dos Espíritos” de Allan Kardec. A
existência de um livro sagrado ou de uma fonte documental escrita é importante
para uma religião, mas não é o que lhe atribui esse “status”, como acompanhamos recentemente no caso polêmico em que um
juiz no Rio de Janeiro nega o caráter de religião às religiões de matrizes
africanas.”
Mesmo
diante de acréscimos e distorções, a Bíblia pode ser trabalhada e interpretada
sem que os aspectos metafísicos (os que vão além do físico) interfiram. “É
possível sim, apesar de não ser este o intuito, visto que como falei
anteriormente, a Bíblia é um livro religioso, de cunho sagrado. Há
interpretações literais da Bíblia, o que colaborou com os principais conflitos
entre ciência e religião, assim como estudos especificamente históricos a seu
respeito. Mas ressalta-se que a Bíblia não deve ser interpretada como um relato
preciso da história da humanidade. Falo isso sob um olhar da própria ciência,
pois para um crente, ou para alguém que crê na Bíblia como modelo de prática de
vida, ela é a explicação mais verdadeira da existência humana. E nesta
perspectiva, os aspectos metafísicos, no que se referem ao sentido da
realidade, não podem ser excluídos”, analisou a antropóloga.
Voltando
à questão da salvação, à ideia de que somente por meio do “caminho estreito e
espinhoso” será possível ascender ao Reino de Deus, a antropóloga frisou que a
ideia de salvação é bem diversa entre as religiões que a têm entre os seus
propósitos: a condução do homem à santidade e à vida eterna, o destino da
eternidade, da vida após a morte, a libertação da alma do ciclo da morte e da
reencarnação etc.. “Uma necessidade de ser redimido ou de ser libertado,
através do sofrimento ou de uma vida de sacrifício, de negação e renúncia dos
prazeres do mundo, estão entre os meios de se conseguir essa tão almejada
salvação. Daí a analogia, presente inclusive na Bíblia, de um caminho estreito,
no sentido de ser difícil, doloroso ou árduo, escolhido por poucos. A salvação
eterna seria assim uma recompensa para os que conseguem trilhar esse
caminho.”
E é a
interpretação de versículos, o conteúdo destes, que provoca a discussão entre o
saber da religião e a busca pela salvação. Um dos mais aludidos pelo aspecto
religioso é o de Mateus, capítulo 30/31: “E amarás o Senhor teu Deus com todo o
teu coração, e com toda a tua alma, e com todo o teu entendimento... amarás o
teu próximo como a ti mesmo”, já citado neste texto. A antropóloga Eliane
Anselmo frisou que o versículo em questão é um dos que representam o Novo Mandamento
na fé cristã.
“Pode-se dizer que esse Novo Mandamento é uma síntese dos
ensinamentos de Jesus, de sua vida e morte. Esse mandamento é mais uma
exortação que Jesus faz a seus discípulos. Mostra que seu desejo era que os
discípulos - representando todos os que decidissem lhe seguir – em vez de
tentar cumprir a Lei ou os ensinamentos dos profetas, expressassem seu
amor. O
amor de Jesus Cristo passa assim a ser um modelo para a humanidade. Assim, o
amor entre os homens torna-se consequência do amor dispensado por Jesus. Nas
concepções monoteístas, o amor de Deus é um conceito fundamental, um
atributo divino segundo o qual Deus deseja
comunicar-se bondosamente com sua
criação. Esses
versículos podem representar o desejo de Deus para a humanidade.
”