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Agência Brasil |
Eliane
Gonçalves e Thiago Padovan
Da
Agência Brasil
“Nossa
declaração apresenta-se como o protesto mais vigoroso e necessário da
humanidade contra as atrocidades e opressões das quais milhões de seres humanos
foram vítimas ao longo dos séculos, principalmente durante as duas últimas
grandes guerras.”
Esse foi
o discurso do jurista René Cassin em Paris, no dia em que foi aprovada a
Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas
(ONU), em 1948. Cassin é um dos principais autores do texto. Ele lutou na
Primeira Guerra Mundial e testemunhou o Holocausto da segunda. A barbárie
catalisou a necessidade do compromisso firmado há 75 anos.
Mas,
apesar das promessas, as atrocidades persistiram: Vietnã, em 1968; genocídio de
Ruanda, em 1994, bombardeios a Gaza, na Palestina, em 2023. E o Brasil, durante
a ditadura militar, também permitiu atrocidades.
No dia 20
de novembro de 1970, em São Paulo, o estudante secundarista Emilio Ivo Ulrich,
que lutava contra a ditadura militar, foi preso e levado para o recém-criado
Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna
(DOI-Codi).
“A partir
daquele centro ali, as pessoas já estavam peladas. Já estavam sendo torturadas.
Pelo simples ato de atravessar o pátio e esperar. Aqui e aqui em cima
funcionavam então as salas de tortura”, relembra Emílio Ulrich, que, mais de 50
anos depois, voltou ao DOI-Codi para esta entrevista.
O prédio
de três pavimentos com grades no lugar de portas e um pátio que hoje serve de
estacionamento foi um dos maiores centros de tortura da ditadura militar.
Emílio superou a dor física, mas ainda carrega as marcas da desumanização.
“Uma
noite, que eu já tinha passado muito tempo no pau de arara, tinha passado para
a cadeira do dragão, palmatória, choque elétrico e eu não consegui parar de pé.
Então eu fiquei de quatro pé. Eles colocaram a coleira no meu pescoço e com a
cordinha eles me puxaram até o chuveiro. Enquanto eu era arrastado, me chutavam
a bunda, faziam gozação, brincavam: ‘Dá um osso que ele levanta!’. Um
instrumento de tortura que realmente acabou comigo foi esse. Porque eu fui
transformado em um cachorro!”, relata.
Quem
comandou a sessão de sadismo foi o coronel Carlos Brilhante Ustra, que chefiava
o DOI-Codi. O militar chegou a ser homenageado pelo então deputado federal Jair
Bolsonaro, ex-presidente da República, ao proferir o voto pelo impeachment de
Dilma Rousseff, também torturada por Ustra. “O terror de Dilma Rousseff”, disse
Bolsonaro no plenário da Câmara dos Deputados em abril de 2016.
Em um
contexto de impunidade, Emílio não acredita que seja possível construir uma
democracia. “Eu não posso perdoar as Forças Armadas pelos males que eles
praticaram. Eles não fizeram isso só com quem foi preso. Eles fizeram mal à
nação brasileira, e eles foram anistiados. Eles estão aí. Eles mantêm a
estrutura de poder. É a mesma da época [do período da ditadura]. Os civis, no
Brasil, são subjugados a essa estrutura militar. Esse é um país subjugado. O
que eu digo é o seguinte: nós temos sopros, direções democráticas que podem ser
aproveitadas, que podem acontecer. Mas isso nos dá uma noção falsa de
democracia.”
Passar a
limpo
Segundo a
Comissão Nacional da Verdade (CNV), 434 pessoas morreram nas dependências do
centro. Emílio não sobe as escadas que levam até as salas onde foi torturado
por 30 dias. “Eu não subo lá. Eu só subi a primeira vez, anos atrás, durante o
trabalho da comissão da verdade. Me arrebenta. Eu não consigo.” Mas o trauma
não é apenas individual.
“O trauma
não é um destino. O trauma é um desafio subjetivo. Ele envolve um trabalho
subjetivo, pessoal, mas também coletivo, um trabalho em que a memória reabilita
as relações. Se você não pode ir a um lugar, é porque não tem dispositivos que
estão te ajudando a ir a um lugar. A comparação é, de novo, brutal. Nossos
vizinhos argentinos tiveram uma ditadura um pouco depois da nossa e você vai ao
Parque do Prata e você encontra 30 mil nomes de pessoas que foram desaparecidas
durante a ditadura militar. Onde é que estão os nossos memoriais?”, questiona o
psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP).
O
professor critica ainda o fato de que o país não reviu estruturas autoritárias,
como a polícia. “O Brasil foi o último país a ter uma comissão da verdade, e
ela foi bloqueada na divulgação dos seus resultados. O nosso letramento
policial para os direitos humanos é abaixo do sofrível. Onde estão os
professores, onde estão as academias abertas, onde estão aqueles que estão
promovendo uma cultura diferente, uma cultura que poderia fazer nossos
policiais, que ainda são militares, PM? Isso é um atraso. O resíduo obsceno da
ditadura militar”, avalia.
E, sem
passar a limpo a história, os erros se repetem e os direitos mais básicos ficam
no papel. “Direitos humanos é uma coisa tão ampla, mas hoje eu traria como [o
direito à] vida, porque acho que deveria ser o direito que todo mundo deveria
ter. E nós, principalmente, pretos, pobres e periféricos. Nós não temos esse
direito.”, aponta Maurício Monteiro, sobrevivente do Massacre da Casa de
Detenção do Carandiru, em 1992, em São Paulo.
Direito à
vida tirado de 6.429 pessoas que morreram em intervenções policiais em 2022.
Uma média de 17 pessoas por dia, sendo que oito a cada dez dos mortos eram
pessoas negras. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de
2022.
Maurício
Monteiro atua hoje como educador e mediador no Espaço Memória Carandiru, além
de ser empresário e manter o canal Prisioneiro 84.901 no YouTube.