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Tânia Rêgo - Agência Brasil |
Rafael
Cardoso
Da
Agência Brasil
A
historiadora Silvia Lerner estava com tudo programado para o lançamento de um
novo livro no Brasil, quando a guerra entre Israel e Hamas começou. Ela vive em
Tel Aviv e, durante cinco dias, ficou abrigada no bunker que tem em casa,
sem saber se conseguiria um voo. Havia ainda o desafio de publicar uma pesquisa
sobre o Holocausto em um contexto que mobiliza posições exaltadas
contra judeus, árabes e outros povos envolvidos nos conflitos do Oriente Médio.
O primeiro ponto foi superado e ela
lançou o livro “A música e os músicos em tempos de intolerância:
o Holocausto” no mês de outubro em São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro.
Sobre o segundo ponto, a autora defende que, apesar de tratar de um tema do
passado, a pesquisa pode ajudar na reflexão sobre a intolerância entre os povos
nos dias atuais. As dificuldades de diálogo e de aceitação do outro, segundo
Silvia Lerner, favorecem a violência e tornam acordos de paz cada vez mais
distantes.
A
pesquisa da historiadora fala da perseguição dos nazistas, que provocou a morte
de cerca de 6 milhões de judeus nas décadas de 1930 e 1940 na Europa, evento
conhecido como Holocausto. Em meio aos guetos, campos de concentração e de
extermínio, muitas vítimas encontraram refúgio na música. O que, segundo
Silvia, era uma forma de resistência psicológica contra a violência extrema.
Todas as músicas apresentadas no livro foram escritas originalmente
em ídiche ou alemão, mas foram traduzidas para o português pela autora. Elas
podem ser ouvidas no idioma original por meio de QR Codes. Em entrevista à Agência
Brasil, a historiadora dá detalhes da pesquisa e da experiência
em Tel Aviv, em meio aos conflitos entre Israel e Hamas.
Agência
Brasil: Por que você escolheu esse tema de estudo?
Interesse apenas acadêmico ou tem alguma relação pessoal com o assunto?
Silvia Lerner: Meus pais eram sobreviventes do Holocausto.
Eram judeus alemães e viviam em Berlim. Eles se tornaram refugiados no
Brasil. Eles vieram sozinhos, então eu nunca tive avó, tio, tia, porque todos
morreram na Alemanha ou foram levados para campos de concentração. Fiz
faculdade de História e consegui uma bolsa na Escola Internacional de Estudos
sobre Holocausto, em Jerusalém. Ali, comecei a me especializar nesse tema
e em História Judaica. Buscava encontrar respostas para tanta maldade. Você
começa a estudar e ver como os homens são cruéis. E a troco de quê? Se me
perguntarem hoje se eu tenho as respostas, vou te dizer: já estudei muito, mas
eu ainda não encontrei o que justificasse tanta maldade e crueldade. Eu vejo
que nos homens não aprenderam. Porque desde que a guerra terminou, a gente já
assistiu a vários genocídios, vários eventos e momentos de falta de paz.
Agência Brasil:
Você estuda letras de músicas produzidas pelos judeus nesses tempos
de Holocausto. Como teve acesso e como foi o processo de seleção, tradução
e análise de fontes?
Silvia Lerner: Dentro desse tema mais geral, eu me identificava com
o campo cultural. E resolvi focar na arte e na música. Minha filha morou um
tempo em Nova York, eu ia muito lá, e consegui juntar um material que encontrei
pesquisando lá, principalmente livros e áudios que encontrei no Institute for
Jewish Research (YIVO). Tinha um com músicas escritas em ídiche e, como eu sei
a língua, comecei a traduzir e a procurar áudios correspondentes produzidos nos
Estados Unidos, em Israel, na França. Algumas também estavam em alemão e, como
também sei o idioma, consegui traduzir.
Agência Brasil: A
pesquisa encontrou cerca de 300 músicas produzidas nesse contexto pelos judeus.
Qual critério você utilizou para analisar e publicar 31 delas no livro?
Silvia Lerner: Eu comecei a escolher músicas que fossem produzidas
em espaços diferentes. Por exemplo, algo que era do gueto de Varsóvia, do de
Vilna, do de Białystok. Para mostrar o quanto se produziu, em tantos lugares
diferentes. Tem músicas feitas em campos de extermínio, como Treblinka e
Auschwitz. Mas é interessante que, mesmo em lugares tão diferentes, existam
pontos em comum. Por exemplo, muitas traziam em comum uma estrofe que diz
“dorme, meu filho, dorme”. Era um sentimento do pai e da mãe que não queriam
que o filho percebesse toda a tragédia em volta. Elas também costumam trazer
temas como a saudade e a chamada para uma luta.
Agência Brasil:
Quais músicas você destacaria como emblemáticas desse período?
Silvia Lerner: Tem uma que eu gosto muito que se chama Friling,
(Primavera), composta no gueto de Vilna, em ritmo de tango. O autor escreveu
essa música logo após o assassinato de sua esposa, com quem tinha casado
recentemente. E realmente é uma música bonita, emocionante. E perguntaram a
ele, como tinha conseguido compor algo naquele momento. E ele respondeu que era
a música que o segurava, que sustentava os músculos dele. E por que o ritmo de
tango? Por que os alemães permitiam esse tipo de ritmo. Ao contrário, por
exemplo, do jazz, que eles não admitiam. Para eles era um estilo de origem dos
negros, grupo que eles perseguiam. E o tango era visto como dança de submissão
da mulher ao homem.
Agência Brasil:
Você centra a análise das músicas a partir do conceito de resistência, que há
muito tempo é explorado na historiografia em diferentes situações. Pode
explicar como você o entende e o aplica no estudo?
Silvia Lerner: Havia tanto a resistência armada, quanto a
resistência psicológica. Os judeus pegaram em armas tardiamente. Não estavam
habituados, não tinham treinamento militar. Somente quando sentiram que os
guetos estavam sendo evacuados é que resolveram pegar em armas. A resistência
psicológica consistia em produzir elementos, como a música, para esquecer a
fome. Em trabalhar uma composição para esquecer a saudade. Era tentar viver com
dignidade em tempos indignos.
E havia o papel da transmissão e do testemunho. Quando os guetos
iam sendo evacuados, os prisioneiros eram enviados para diferentes lugares. Mas
eles levavam com eles as músicas. Cantavam em barracões em diferentes campos de
concentração. E quando a guerra acaba, há um grupo de sobreviventes que começa
a se interessar em manter essa memória e a juntar todas as músicas que tinham
ouvido e passar para partituras.
Agência Brasil: O
seu livro está sendo lançado em um momento de conflito no Oriente Médio, e os
judeus são um dos grupos envolvidos. Acredita que o contexto pode ter
influência nas leituras que serão feitas do livro? O estudo pode, de alguma
forma, dialogar com a atualidade?
Silvia Lerner: O título traz a palavra intolerância. E esses
eventos no Oriente Médio têm como foco a intolerância. Acho que lançar o livro
nesses tempos tem um impacto. Até para os leitores perceberem que a
intolerância ainda não terminou. No sentido de não aceitação do outro.
No Holocausto, foi assim. Para o nazista, o outro não era o que ele
queria, não tinha a compleição física considerada ideal, que era ser ariano.
Ele não produzia a arte que os ideólogos do nazismo consideravam a correta. E o
que acontece no Oriente Médio é essa dificuldade em aceitar o outro. Isso nos
dois lados, a ponto de ter sido deflagrada essa guerra violenta.
Agência Brasil:
Você estava em Israel quando começou o conflito mais recente, entre o governo
israelense e o Hamas. O que poderia falar dessa experiência e de como
acompanhou de perto os acontecimentos?
Silvia Lerner: Eu vivo em Israel há um ano e meio. E esses cinco
dias que passei lá, antes de voltar ao Brasil para o lançamento do livro, não
foram fáceis. Tinha o estresse de querer sair para honrar os compromissos aqui
e não conseguir. As sirenes tocando me deixavam muito perturbada. Não é fácil
ter que correr para o quarto antimíssil. Você fica ali fechada, correr com os
documentos, água, comida. Em algum momento devo voltar. Eu moro lá. Tenho uma
filha lá e três netos. No condomínio onde eu moro, muitos vizinhos foram
recrutados para o conflito. No kibutz, no Sul de Israel, tem uma família de
brasileiros que eu conheço e eles conseguiram se salvar. E eu cedi meu
apartamento para uma outra família, vinda do Norte, se abrigar.